quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Rio de Fevereiro

Existe uma paisagem urbana complexa, não tão desenhada quanto a teia da aranha, mas complexa, complexada. Nos espaços baixos, depressão de qualquer alma viva o  bastante para morrer aos poucos de madrugada, em becos, esquinas e pontos de ônibus. Nas planícies, celulares, os rostos não se veem senão por fotos e avatares ao longo da prolongação da rua em obras de arte contemporânea, mais vazias do que os bolsos de quem anda armado apenas com a sorte. No planalto, ah esse está cheio de ladrilhos larápios ladrões de pão, não como Aladdin que roubava pra matar a fome, estes roubam pra matar de fome, e sede, e raiva, e dor. Nas surdinas, folias onde chovem confetes de balas perdidas e pretos mortos. Nas montanhas, pipas dançam no meio das estrelas e a chuva devasta toda subida da maré de esgoto. O navio negreiro parte do ponto final, confunde o aperto do latão com o do coração, que não bate em ritmo de samba, no Rio que só corre no mês depois de Janeiro, e morre afogado no asfalto, nas águas de março ou no suor dentro do trem. O surdo cala a boca de toda a dor da cidade, o samba termina em cinzas. Ninguém sabe de onde vem o vento, reza a lenda que é do mar, mas o mar é só pra quem paga, logo o vento não é mais meu, nem o samba, nem o surdo, nem a cidade. Mas a chuva e o assalto ninguém paga. Ninguém.

https://sweek.com/#/read/51301/1400000162

 Texto originalmente publicado na plataforma Sweek.

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