segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Flores Negras

Havia um pouco vento que cruzava o céu, algumas vezes, mas fazia bastante frio. Seu corpo bamboleava, estava cansado da viagem, da vida. Vagarosamente andou pelo cais. Não se atreveu a olhar as estrelas para não se deparar com a Lua. Desceu até as caldeiras. Só havia um senhor de idade, com o rosto chamuscado e as roupas manchadas pelo carvão, jogando com a pá as pedras de carvão nas chamas. Próximo ao homem, um gato preto se lambia, deitado no chão, perto da chama para se aquecer, não tão perto para não se queimar. Lá ficou observando aquela imagem, aquele homem, aquele gato. Seus olhos não acompanhavam a precisão de seus pensamentos. Sua mente estava longe dali, sua mente estava longe do mar. O senhor, então, pôs-se a cantar, uma melodia antiga, palavras rebuscadas, uma mitológica tragédia era narrada em sua rouca e falha voz. 

_ Há guerreiros correndo pela estrada, flores negras estampadas em seus peitos, flores negras da coroa imperial, correm sedentos cegados por um amor descomunal. Contra estes correm os inimigos da coroa, homens cuja luta é derrubar a Imperatriz, lutam com força e ostentam o saber, talvez maior do que os guerreiros das flores negras pudessem ter. Há mais guerreiros dispostos a dar a vida pela Imperatriz, do que inimigos dispostos a machucá-la. Mas suas vidas deram em vão, pois a Imperatriz foi destronada. Perdemos a luta - gritou da tropa o capitão - faltou força em minha tropa, força em meu coração. Perdemos a batalha - lamentou a Imperatriz. Faltou coragem – disse o chefe da tropa real - e quando a coragem surgiu, a guerra já estava perdida. E agora vou – disse a Imperatriz – vou partir sem deixar nada para trás, sem sequer lamentar. Tiraram-lhe o trono – apaziguou-a o capitão – não os sonhos que tens a sonhar. 

Então a criança, desatenta a narração, mas conectada a melodia fechou os olhos e balançou junto ao navio. Algo ficou para trás. Sabia o que deixara, sabia o que perdera, mas não teria forças para voltar, seu fim ainda estava longe, mas não precisava mais viver. Estava deixando o Mundo Real, o bairro onde nascera e fora criada. O bairro onde fora colocada. Estava-o deixando com a única certeza de que jamais deveria voltar. E com os olhos fechados pensava sobre a vida que tivera, a vida que estava deixando, pensava sobre a noite, sobre esse estranho lugar para o qual estava sendo levada. O navio sacudia e no mesmo ritmo a criança balançava, tentando prever bons sonhos nesse mundo novo. 

 Não há. 

Disse o senhor sem tirar os olhos da caldeira, ainda jogando pedras de carvão contra a chama. Os olhos do menino se abriram em susto, e parou de balançar. 

 Como disse? 

 Não há bons sonhos aonde você vai.




Trecho do livro "Bairro dos Corvos Elétricos" disponível em E-book e Livro Físico.

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