Não foi o contrário
Quando nasci
Não fui registrado
Não como indivíduo
Não como pessoa
Não como ser vivo
Fui colocado debaixo do mesmo saco plástico
Que cobre a massa de cadáveres
Que nasceram que nem eu
Pretos
Foi um homem branco que roubou meus sonhos
Minha vontade de viver
Quando eu mal sabia falar
Mal sabia andar
E ainda hoje rasga minha pele lembrar
Por isso não vou.
Eu fui uma criança que não sabia sorrir
Não queria brincar
Não queria existir
Não queria ter nascido
E eu sabia disso lá
Quando me disseram pra me calar
Como se de alguma forma
O problema fosse eu
Eu que nasci
Eu que existi
Eu que sonhei
E não podia
Não devia
Eu tinha plena consciência de que eu não devia existir
Que eu não devia estar aqui
Quando eu não sabia ainda nem pronunciar a palavra consciência
Não sei se foi deus
Ou alguma divindade supostamente do bem
Que fez com que o sorriso dela se refletisse nos meus olhos
E como ferro em brasa, ficasse pra sempre marcado em mim
Aquele sorriso era o único motivo pelo qual valia a pena respirar
Era um mundo inteiro aquele olhar
Um universo completo e maravilhoso
Talvez na época eu não fosse capaz de ouvi-la da forma como ela de fato soava
Seu sorriso sozinho era uma experiência transcendental
Ritualística
Meu corpo e minha alma não permaneciam unidos
Não quando ela cantava
De alguma forma
Ela me roubava de mim
Me tirava desse corpo que me sufocava
Ela me salvava
Todos os dias em que eu queria morrer
E eu quero morrer todos os dias
Não sei se foi deus
Ou alguma divindade supostamente do bem
Que construiu muros gigantescos entre o mundo e o meu
E no meu mundo só cabia ela
Nada e nem ninguém além dela
Não comportava
Ela era tudo que eu precisava pra viver
Minha água e oxigênio
Era essencial
Respirar sem ela, era opcional
Porque eu não podia imaginar o mundo sem ela
Até que se tornou real
O mundo desmoronou
O meu primeiro
Depois o muro que separava o mundo do meu
Não bastasse a dor imensurável de perder o mundo inteiro
A única pessoa que valia o esforço de respirar
De caminhar
De viver
Caí num mundo que não era meu
Do qual eu nada sabia
E eu não tinha lugar
E eu não conseguia morrer
Coisa mais sensata a fazer
Eu não era capaz
Porque ela se foi
Não o amor
Não as lembranças de tempos bons
Mas eu não demoraria a descobrir
Que o tempo nunca foi bom.
Dormi sozinho nos escombros do meu mundo
Agarrado às lembranças
Na esperança psicótica de reconstruir, pelo menos os muros
Porque o mundo fora do meu me assustava
Me assusta
Mas depois que você enxerga o horror
Não tem como esquecer
E eu vi o horror neste mundo
Coisas terríveis e tenebrosas
E tantos outros mundos sendo destruídos
Tantos mundos em ruínas
Tantas vidas e sonhos tratados como descartáveis
Descartados
Eu não devia estar aqui
Estou neste mundo por engano
Cada uma das minhas dores
E marcas
Cada uma das minhas cicatrizes
E feridas abertas
Aumentam ainda mais
Quando o mundo além dos escombros do meu mundo
Devasta o mundo de cada um
Pra comer
Por prazer
Por lazer
Pra lucrar
Por odiar
Pra evangelizar
Pra diga lá
Minhas consciência coletiva não foi um processo altruísta
Porque eu vivia bem no meu mundo só meu
Precisei ver meu mundo desmoronar
Pra notar tantos outros mundos além do meu
Além do meu umbigo
Tantos em ruínas
Tantos devastados
Tanta dor por todo lado.
Se a mulher que salvou minha vida tantas vezes
E me deu um mundo pra chamar de meu
Me permitiu ser livre, ainda que por um curto período de tempo neste lugar
Onde eu não tenho lugar
E eu não consigo morrer
Tudo que me restava fazer
Era dedicar a minha existência sem sentido
A salvar outros mundos
Para que nenhuma criança
Não saiba sorrir
Porque nunca a ensinaram
Nunca a permitiram
E quem sabe, exatamente, o sorriso dessa criança
Um dia
Se torne o mundo inteiro de alguém.
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