As Bahias e a Cozinha Mineira |
A banda As Bahias e A Cozinha Mineira despontou no cenário musical latino americano, com o estouro do álbum ‘Mulher’ em 2015, álbum de estreia da banda. As vocalistas com timbres e sotaques inconfundíveis e bem marcantes trabalham uma sonoridade que mistura MPB, Soul com ritmos de uma brasilidade cadente, mais especificamente a afrobrasileirisse, numa obra na qual todas as músicas são autorais. O ‘Mulher’ colocou As Bahias e a Cozinha Mineira nas paradas de sucesso, uma obra de arte completa, a começar pela a capa do álbum.
Capa do Álbum 'Mulher' |
Foi uma surpresa ver que o mais recente álbum da banda intitulado ‘Tarântula’ ocupa praticamente todos os postos no ranking das músicas mais ouvidas do trio no Spotify. O intrigante é que o álbum foi lançado em Maio de 2019 e já ultrapassou não apenas o antecessor ‘Bixa’ de 2017 – que inclusive recebeu o Prêmio da Música Brasileira nas categorias Melhor Álbum e Melhor Grupo de Canção Popular – como o primeiro álbum ‘Mulher’. ‘Tarântula’ poderia ser descrito apenas como inacreditável e vou elaborar. Apenas vale a pena contextualizar, que os dois primeiros álbuns foram produções independentes, até que o selo Universal Music viu a grande oportunidade de abarcar o grupo e assina a produção do último álbum.
Capa do álbum 'Tarântula' |
Extremamente político escolher esse título para o CD, durante a Era neoliberal-teocratico-nazista que o Brasil passa a viver depois das eleições de 2018. ‘A mátria que te pariu é matéria de fogo, é jogo, é jogo, é jogo de corpo, de verbo e poder, é jogo de ferro, de terra, de ter [...] matéria de fogo em se jogo tem bala, tem bíblia, tem brasa: Brasil’ (trecho da música Mátria do álbum Tarântula).
O motivo moral da Operação Tarântula era impedir a propagação do HIV, que naquela época era entendido como um vírus transmissível única e exclusivamente por LGBTs. Os estigmas e desinformação acerca do vírus fizeram da vida de todos os membros do vale uma vidraça para a motivação de ódio disfarçada de moral dos grupos conservadores da sociedade, e por consequência, da sociedade como um todo. O fato é que em épocas como a ditadura militar no Brasil ou a Revolta de Stonewall nos Estados Unidos, as pautas LGBT+, especialmente as trans, não eram uma questão de direita ou esquerda, porque esses grupos eram renegados e perseguidos por ambos os lados. Apesar de hoje as pautas LGBT+ terem conquistado mais visibilidade e debate, a cultura homo/transfóbica segue enraizada e os grupos no poder ele não, mas principalmente ele seguem negligenciando o problema, cientes que ‘ignorar o problema é aumentar o problema’ (trecho da música 'Na Rua' da Banda Gente).
‘Na favela tem moço engajado, sempre ri quando passa um viado, sem saber que reforça o passado: Nada muda. Uma muda de arruda traz sorte e protege a travesti da morte, tem pipoco e pipoca, compade, para os reis que comandam a cidade, possam ver tudo muito à vontade’ (trecho da música Pipoco e Pipoca do álbum 'Tarântula').
Os respingos da trágica falta de informação e da discriminação vem até os dias de hoje. Apesar do avanço da ciência e da tecnologia, a realidade brasileira é embasada em conceitos retrógrados de moral e bons costumes, argumentos que só funcionam para oprimir mulheres e LGBTs, fortalecidos nos mesmos estigmas de uma época em que travestis carregavam navalhas e lâminas debaixo da língua para se cortarem caso houvesse a ameaça de serem presas, porque a polícia tinha medo do sangue ‘contaminado’ e sequer as tocavam se estivessem feridas.
Pensando em sonoridades, a sensação é de ouvir um Opera Rock – ou no caso um Opera Antropofágico – ou um espetáculo cênico musical, que evoca imagens teatrais com transições cênicas perfeitas. As músicas se complementam com coerência, ultrapassando as tênues fronteiras entre a política e a poesia, entre a militância e o romance, principalmente, ao se pensar em vivências trans, na qual o afeto é condicionado aos estigmas sociais da ‘mulher pra pegar, mulher pra casar’. Dentro de um amplo debate sobre afetividade no meio trans, o amor é às escuras, às escondidas, em relatos que se repetem de parceiros que não assumem o relacionamento afetivo, por vergonha ou medo do que dirão, por estar com uma pessoa trans. A solidão da pessoa trans – mais especificamente da mulher trans e das travestis – é uma realidade. Mulheres trans cantando sobre afeto, é muito político.
Pensando em literatura, não previ que poderia haver tanta poesia política ou política poética, ao ponto de você estar inquieto e incomodado com o encanto que aquelas palavras cantadas provocam ou encantado e deslumbrado com o incômodo e a inquietação que as palavras provocam. Só há uma faixa de todo o álbum que não foi composta por Raquel Virgínia e Assucena Assucena, ambas vocalistas trans da banda. A estética apesar de se diferir do que produziram antes, com mais Pop, Samba e Rock, mantém a marca, a assinatura sonora do trio, da complexidade das perspectivas e escolhas criativas para compor essa obra. Totalmente justificável esse álbum ter sido indicado ao Grammy Latino, porque ele segue sendo inacreditável, porque é simplesmente inacreditável que um álbum tão bem concebido como foi o 'Mulher' tenha sido superado por um álbum mais bem concebido ainda. Reformulando, é inacreditável que As Bahias e a Cozinha Mineira tenham sido capazes de superar seu próprio brilhantismo estético.
Pensando num recorte um pouco mais amplo, o que o ‘Tarântula’ traz é uma amálgama de ritmos, melodias, poesias e realidades, ouvir esse álbum fora de seu contexto social é como assistir ‘Caça-Fantasmas’ sem ter visto os anteriores: Você vai entender? Vai. Vai se apaixonar? Vai, mas não com a mesma conexão de quem viveu aquilo, de quem entende as nuances e referências que estão ali. Mas a sensação nostálgica é o que dá poder a esse álbum, se é que é possível sentir nostalgia de um tempo tão conturbado ao qual o CD se refere. A música tem essas nuances, produz sentidos controversos, ela consegue unificar corpo, alma e mente num tufão de possibilidades de sentidos.
‘No baralho jogo os As, te embaralho, sou dama de paus (Caralho!)’ (Trecho da música 'Uma canção pra você (jaqueta amarela)' do álbum 'Mulher').
Partindo de uma Operação que assassinou centenas de mulheres trans em São Paulo, para um álbum que retoma um episódio da história brasileira adaptado para o contexto atual, sem demagogias, 'Tarântula' é uma obra de arte, uma revolução musical em forma de política ou uma revolução política em forma de música.
****Esse texto é um trecho adaptado da dissertação Tudo que é sólido desaquenda desmancha na nuvem: a produção musical de artistas trans na era do streaming, de minha autoria, disponível completo em PDF no site da UFJF, para acessar o trabalho completo, basta clicar aqui**
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