sábado, 13 de junho de 2020

O cara que cantava alto na rua


Quando eu era criança, o cara que eu mais admirava (além do Clive Davis) era um cara que andava pelas ruas de fone nos ouvidos e cantando alto. A cidade era pequena, era exatamente assim que as pessoas o descreviam, ‘o cara que canta alto na rua’. Numa semana de inspiração vocacional na escola, nem sei se chamavam assim, mas quando levavam pessoas de profissões diversas pra falar sobre seus empregos, levaram ele. Era gerente de um banco, o maior banco da cidade naquela época. Ele provavelmente falou sobre o cargo, sobre suas responsabilidades, sobre a sua formação acadêmica e sobre suas experiências profissionais. Ele pode até ter falado o nome dele. Se eu perguntasse pra algum colega de classe no final daquele mesmo dia, ninguém se lembraria, porque não o levavam a sério, era só o maluco que cantava alto pelas ruas. Eu também não prestei atenção em nada que ele disse, mas não por pensar que ele era louco, mas especificamente porque eu já tinha a minha inspiração profissional completamente ocupada por Clive Davis, então dificilmente eu iria admirar um gerente de banco, mas eu admirava aquele cara, pelo simples fato de ele cantar alto na rua. 

Jennifer Hudson cantando na rua


Talvez fosse a confiança dele. Se você resolve cantar alto na rua e não é a Jennifer Hudson, sua autoestima deve ser, pelo menos, indestrutível, pra achar que pode cantar alto em vias públicas, tendo o público escolhido ouvir seu talento (ou falta dele) ou não. Não era isso. Eu sabia o que era que eu admirava naquele cara: era a capacidade de não se importar. Nem com a falta de talento, nem com o que iam pensar dele, nem pelo rótulo que podia ganhar (e ganhou: maluco que canta alto na rua), nem com nenhum tipo de convenção que poderia penalizar sua seriedade como profissional importante que ele era, só porque ele se deixava levar pela música. Esse era o principal ponto. O levaram na escola com intuito de inspirar crianças na escolha de suas profissões, na minha cabeça eu estava mais interessada em saber sobre a capacidade de não se importar, sobre o que inspirava o maluco que cantava na rua. Eu queria ser como ele. Não gerente de banco, eu queria não me importar, eu queria estar tão imersa no universo fantástico da música, que sem sair do meu mundo, poderia me transportar pra lá. Parecia ser um lugar maravilhoso, a ponto de ele não se importar, de não se preocupar com as normas não oficiais deste mundo. E são tantas normas não oficiais que formam correntes invisíveis que nos impedem de tantas coisas. Aquele cara cantando alto na rua era a prova viva e ambulante de que a felicidade não é permitida. A verdadeira, a genuína felicidade, a da imagem escandalosamente feliz, ela não é aceitável, ela não é tolerável, ela não é ajustável, ela não é controlável, portanto, ela é subversiva. Você não pode ser escandalosamente feliz, porque a sociedade não quer escândalo, ela não quer barulho, balbúrdia, música, revolução. A felicidade incomoda demais os fiscais da vida alheia. Quando sua vida, seu nome, seu afeto, seu amor, sua cor, sua fé, quando sua existência incomoda, não há nada mais revolucionário do que ser feliz. 


“Se você não incomoda o resto do mundo, não há problema em ser anormal”. Yuuko Ichihara (mangá xxxHolic, 2003).


E de todas as frustrações profissionais que eu carrego, hoje eu posso dizer, com firmeza e orgulho, que eu segui os passos do cara que eu admirava, eu sou o maluco que canta alto na rua. E se um dia eu vier a ser 0.1% do que o Clive Davis é, eu vou colocar esse cara no meu discurso de agradecimento, porque das formas turvas que minha mente processou a semana de inspiração vocacional, ele sem dúvida foi uma inspiração pra mim. Não saberia dizer se em todas as áreas da minha vida eu fui feliz neste mundo, mas no mundo pra onde eu vou dentro de uma boa música, posso garantir que fui e sou, afrontosa, incômoda e escandalosamente feliz.

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