Queria trazer apenas uma curiosidade pra turminha que escreve 'vc', 'tmj', 'seje', 'sextou', 'tbm', 'topzera', 'iti malia', mas acha que a linguagem neutra é uma afronta a língua portuguesa em toda sua integridade. Vamos falar sobre linguagem.
A língua portuguesa foi imposta, assim como a cultura portuguesa foi imposta, ou vocês se esqueceram que a colonização do Brasil não foi ocupação de terras abandonadas? Junto com a dizimação de povos indígenas, suas práticas culturais, suas inúmeras línguas também foram assassinadas ao longo do período colonial. Com a chegada de negros escravizados, sequestrados de vários países e povos africanos, suas culturas e, portanto, suas várias línguas foram criminalizadas, rebaixadas, perseguidas. Fora a influência de idiomas de outros povos que vieram na colonização, como holandês e francês.
Apesar de legislação específica, como a lei 10.639/2003 que estabelece a obrigatoriedade da inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira na Rede de Ensino, sabemos que raramente temos contato com essas temáticas, senão por disciplinas optativas, ou você aprendeu sobre culturas afro-brasileiras na escola em disciplina obrigatória?
Quando o português chegouDebaixo duma bruta chuvaVestiu o índioQue pena!Fosse uma manhã de solO índio tinha despidoO português.(Oswald de Andrade)
A tal integridade da língua portuguesa é fruto de muito sangue e violência, de discriminação sociocultural. Mas vamos chegar ao nosso tempo, ao Brasil república. Uma série de fracassos no sistema educacional nacional, resultado da miséria extrema, da fome, e de todo um processo de genocídio da população mais pobre. Alfabetização, durante grande parte do século XX no Brasil, especialmente da população de áreas rurais, era um privilégio.
O projeto de desmonte da educação pública sempre foi pauta de governos de direita, que ocuparam, durante a maior parte da república, os cargos do executivo e do legislativo federais.
O capacitismo sempre foi outro problema na linguagem, até mesmo dentro dos sistemas educacionais. É muito recente a inclusão da obrigatoriedade de intérprete de LIBRAS nas escolas, via decreto federal 5.626/2005 que garante o direito a língua brasileira de sinais para pessoas com deficiência auditiva e pessoas surdas nas salas de aula, desde educação infantil, nas instituições federais. Ainda não há obrigatoriedade que todas as pessoas aprendam libras ou que todas as escolas municipais e estaduais ofereçam intérpretes de LIBRAS. O braile então, raro depararmos com ele em produtos de super mercado ou sinalizações em elevadores e vias públicas.
A linguagem de internet conhecida por criar novos termos e palavras, a partir de abreviaturas e outras formas de neologismos também é capacitista, uma vez que qualquer palavra não oficial na língua portuguesa não é lida pelos dispositivos de leitura digital, usado por pessoas com deficiência visual. Essas palavras também não conseguem ser lidas por aplicativos de interpretação de libras e nem softwares de criação automática de legenda para vídeos, usado para dar acessibilidade para pessoas com deficiência auditiva.
Quando começou-se a pensar em linguagem neutra em português, trocávamos os artigos 'a' e 'o' por 'x' e '@'. Rapidamente, a comunidade percebeu que estava sendo capacitista, por tais palavras dificultarem a comunicação com pessoas com deficiência visual ou pessoas com dislexia e, por isso, abolimos o uso do 'x' e '@'.
A língua portuguesa é machista, diferente, por exemplo, da língua inglesa, que permite a não obrigatoriedade de dar gênero aos sujeitos de uma frase com o pronome 'they' = 'eles/elas/elus'. Sem contar que grande parte dos adjetivos e substantivos em inglês não dão gênero ao sujeito da frase, como 'teacher' = 'professor/professora', 'doctor' = 'médica/médico', 'tired' = 'cansado/cansada', 'wonderful' = 'maravilhosa/maravilhoso'.
Em português, se a frase se refere a 10 mulheres e 1 homem, a norma culta nos força a concordar com o homem. Ao invés de falar 'todas' ou 'elas', concordando com o gênero da maioria das pessoas presentes na frase, a língua portuguesa nos manda dizer 'todos' ou 'eles', concordando apenas com o único homem presente.
Fora as questões de estrangeirismos, palavras de outro idiomas que usamos no nosso vocabulários como 'crush', 'feedback', 'hater', 'top', 'cupcake', 'croissant', e regionalismo, palavras que possuem significados diferentes em cada um das regiões brasileiras, ou palavras diferentes que se referem a mesma coisa, de acordo com a cidade/estado. Temos dialetos inspirados em línguas que foram desaparecendo ao longo dos anos de opressão portuguesa e alguns resgates de idiomas que eram praticados por essas terras antes e durante a colonização.
A língua portuguesa já passou por inúmeras alterações, a mais recente em 2009, que inclusive gerou tumulto para concurseiros, que precisaram atualizar seus conhecimentos sobre o idioma, mesmo sendo sua língua nativa. Ou por acaso, o jovem hater defensor de manter a língua como é, usa 'vossa mercê' ou 'vosmecê' como pronome de segunda pessoa do singular? A possibilidade de mudança linguística só te incomoda porque se trata de inclusão de pessoas trans não binárias. Assim como nunca te incomodou pessoas que casam e descasam trocando seus nomes no cartório, mas falou que pessoa trans pode trocar o nome, imediatamente, você se preocupa com fraudes, mesmo sabendo que a digital e o CPF da pessoa não muda. A hipocrisia é herdada ou é aprendida?
"Liberdade de expressão é um direito, não um álibi" (série Grace & Frankie)
Se você quer falar sobre a língua portuguesa oficial, bem, ela nunca foi exatamente inclusiva, pra muitos grupos. E se conhecer as regras gramaticais te faz se sentir superior ou melhor do que uma pessoa que não foi alfabetizada ou uma pessoa que tem dislalia ou dislexia, do que uma pessoa que tem sotaque de alguma região, ou qualquer outra forma de discriminação que a linguagem possa fazer, você é apenas um babaca com diploma. A comunicação é bem sucedida quando uma pessoa fala/escreve e a outra entende, pouco importa se é seguindo as normas cultas ou a língua do p.
A língua é um contrato social, uma forma de comunicação organizada através de um sistema de signos criado em comum acordo, de forma a fazer sentido pra determinado grupo de pessoas, em determinado tempo. Assim como já aconteceu outras vezes, esse contrato pode sofrer mudanças para atender as demandas do grupo, conforme o passar do tempo.
Força, guerreiro! Força, guerreira! Se eu pude superar a queda do trema, você vai superar a linguagem neutra.
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