sexta-feira, 10 de abril de 2020

O excludente mundo do academicismo




Você quer diploma ou você quer conhecimento? 


Pode parecer chocante pra você, mas essas duas coisas não são interligadas e nem codependentes. Aliás, se você tem ou quer diploma, é o apaixonado por títulos e fala o tempo todo em ‘carreira acadêmica’, talvez, esse texto te irrite bastante. 

Nesses meus muitos anos de vida, dentro da expectativa de vida de pessoas trans eu sou idosa, e experiências de vida, posso garantir pra vocês que não há nada mais próximo da ignorância, do que o conhecimento estocado na academia. 

Pensando especificamente em pesquisas e estudos nas áreas de humanas e sociais, você já parou para ler um texto de algum teórico sobre essas temáticas? Você já parou para conversar com algum pesquisador ou estudioso de grandes temas como luta de classes, feminismo, movimento negro e movimento LGBT+? Você consegue perceber o abismo que existe entre o que esse indivíduo fala e o que se consegue absorver? 

Não estou negando as ideias não, pelo contrário, tem muitas coisas importantíssimas e totalmente lógicas sendo debatidas por essa galera acadêmica, o que eu estou questionando é a linguagem. De que serve seu conhecimento, suas teorias, suas ideias revolucionárias contra a opressão social, se elas não chegam aos grupos que mais sofrem com essas opressões? E não chega por inúmeros motivos: o acesso à universidade é um deles, é um acesso restrito, é um grupo seleto e fechado que frequenta esses espaços, com sua linguagem secreta que só quem faz ou fez parte desse mundo consegue decifrar. 

Durante o processo de escrita da minha dissertação de mestrado, comecei com a seguinte frase “isto é um trabalho acadêmico, não se deixe enganar pela linguagem” e esse primeiro parágrafo deu o que falar. Porque nele eu deixava bem claro que o objetivo da minha pesquisa não era inflar o ego de nenhum acadêmico e nem fazer parte de mais um clã de teóricos com linguagem rebuscada e pensamentos complexos demais até para despertar o interesse. O meu público-alvo não era aquele. No dia da minha defesa, tive a honra e o prazer de contar com quatro mulheres incríveis que compuseram a banca avaliadora, dentre elas a inigualável Mc Xuxu. E sua fala resumiu tudo que eu sentia ao escrever minha pesquisa. 

Ela disse que toda vez que é convidada para debates em universidades, sempre se sente excluída, porque aquela linguagem usada ali, pra ela, é como se fosse outra língua, outro idioma, um código criado para fazer com que as pessoas se sintam cada vez menos pertencentes àquele espaço. E que a minha pesquisa, a minha defesa, foi a primeira vez que ela conseguiu entender o que estava sendo debatido. 

Aquilo me deixou tão feliz, porque na minha concepção, se meu conhecimento não chega nas pessoas que eu quero que chegue, ele não tem utilidade nenhuma. E se meu conhecimento não tem utilidade, meu diploma também não tem. 

Eu sou privilegiada em ter uma faculdade, uma pós-graduação, um mestrado. Não só pensando no histórico da minha família, mas pensando no histórico de pessoas trans e pessoas negras no Brasil. Na minha mente, meu diploma é um adorno na parede do meu pai, que é a pessoa que sem dúvida tem mais orgulho por esses espaços acadêmicos por onde transitei. Meu pai, um homem negro, trabalhador rural e pescador, de 73 anos que não concluiu sequer o ensino fundamental e é o homem mais inteligente e sábio que eu conheço. Se eu conseguir falar com meu pai sobre luta de classes, feminismo, movimento negro, movimento LGBT+ e ele conseguir me entender, aí sim, eu terei orgulho desse diploma. 

Eu não sou pedagoga, nem professora, mas entendo que quando se fala do poder da educação em transformar a sociedade, eu te garanto, que ninguém está falando do seu diploma, dos seus títulos. Esses não têm poder de mudar nada, especialmente, se você utiliza o seu diploma como carta branca pra ser elitista e excludente, corrigindo o português de alguém pra constrange-la, seu diploma está transformando o que? Você num babaca, só se for, porque mantem o mundo do jeito que é: desigual, opressor e excludente. 

Se você adquiriu conhecimentos ao longo da sua vida, seja através da vivência, da academia ou da profissão, você tem capacidade de torna-lo acessível, e propor estratégias e mudanças sociais úteis. Vocês podem planejar a revolução inteira através de livros de Karl Marx (que inclusive, propõe revoluções trabalhistas ótimas), mas sem os trabalhadores, sem a classe operária, do que adianta O Capital ou o Manifesto Comunista? Aí vemos a esquerda classe média ou a esquerda acadêmica debatendo Marx, construindo um abismo diante dos trabalhadores não politizados, seja porque geralmente essa esquerda não faz parte dessa classe operária, seja porque não falam a mesma língua. 

Existe uma série de debates acontecendo nos espaços acadêmicos que eu realmente não entendo com qual objetivo. Fazendo um recorte para os debates sobre feminismo ou movimento LGBT+, sabe quantas teorias existem sobre esses temas e quantas delas valoriza a vivência da mulher ou da pessoa LGBT+ que não tem diploma? Então, o conhecimento de uma mulher ou uma pessoa LGBT+ periférica, que é o conhecimento pela vivência com a opressão, não conta, o que conta é a teoria desenvolvida por algum teórico europeu que nunca sentiu na pele a opressão sobre a qual teoriza? E aí vocês me dizem que estão propondo transformações sociais. Do que? Da sua bolha? Porque os grupos que de fato vivem, lutam contra e morrem por essas opressões seguem nas quebradas, alheios a todos esses lindos debates e revoluções nas academias. 

Pra que serve seu conhecimento? Pense nisso quando for pensar no seu tema de TCC ou num projeto de pesquisa pra faculdade, mestrado ou doutorado. Onde esse conhecimento vai chegar? Quem vai ter acesso a esse conhecimento? 

O seu diploma não te faz melhor do que ninguém, não te faz mais sábio do que ninguém. Então, aprenda a ouvir as vivências, especialmente, vivências de pessoas fora da sua bolha acadêmica. Uma educação libertadora não visa libertar um indivíduo, mas sim grupos sociais inteiros, multidões, e é preciso alcançar essas multidões. É preciso democratizar o acesso ao conhecimento, a começar, pela linguagem. Se o conhecimento não for do acesso de todos, é privilégio. E se ainda existe privilégio, ainda existe desigualdades. E enquanto houver desigualdade, seu conhecimento pode ser usado para lutar contra ela.

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