Lagarta: Os deuses não se importam. Nenhum deles. Nunca se importaram. A humanidade é só mais um filho abandonado pelo pai, largado sobre os ombros da mãe terra.
Alice: Ta
aí um ótimo motivo para um aborto - disse rindo. E esses putos dizem que são
pró-vida, que se importam com a vida... Como poderiam? Sempre acreditaram que
há vidas que valem mais do que outras. E não só a deles em relação aos animais
que eles torturam e matam para comer numa ceia pagã, ou para fazer doces para
suas crianças mimadas, eles sequer veem valor nas vidas de outros humanos.
Defendem o feto como deviam defender as pessoas fugidas da guerra, famílias,
crianças que morreram afogadas tentando atravessar os muros simbólicos nos
oceanos, nas fronteiras de uma terra roubada. Indignam-se com o aborto, como
deviam se indignar quando uma mãe segura o cadáver de seu filho com uniforme de
escola, tentando entender porque aqueles que o deviam proteger foram os que lhe
arrancaram a vida. Se revoltam com o amor entre dois iguais, mas não se ofendem
com o ódio de um pai que tira a vida de seu próprio filho para que ele nunca
cresça e venha a amar um homem. Meu corpo não pode estar na rua, porque é
imoral, é doentio, é aberração, mas a notícia da minha morte no jornal é
trivial como um jogo de futebol. Humanos... Eles me enojam.
Lagarta:
E tu? Não és humana? - disse baforando a fumaça de seus lábios, com o cigarro entre seus magros dedos.
Alice: Eu não sou um ser humano. Gritam ‘misericórdia’ quando me
veem passar. Eu tenho tantas ideias e sonhos sobre tantas coisas, mas tudo que
querem saber é qual é meu nome ‘de verdade’ ou o que carrego entre as pernas.
Quando eu ando pela rua me xingam, querem me bater, me matar, querem passar a
mão nas minhas partes para ter certeza do que eu sou, como se pudessem, como se
tivessem esse direito conferido pela constituição, de fiscalizar o meu corpo,
de me fazer uma atração de circo, exótica, bizarra, grotesca, algo que você vai
assistir numa lona e tem direitos de dizer ou fazer o que quiser, porque aquilo
não é humano, não é normal. Você se sente no direito de ser invasivo, de ser
íntimo, porque você esquece ou não percebe a humanidade naquele ser. Sou
tratada como uma anomalia que não pertence a este mundo, como um alienígena que
cai nesse planeta e é morto para ser estudado ou estudado até ser morto. E mantido
em sigilo para não causar tumulto e caos, ao mesmo tempo que é exibido em
excursões, para curiosos e céticos. Não sou tratada como humana, portanto não sou
humana, não tenho os direitos de um ser humano, preciso, diariamente, validar não
apenas a minha própria humanidade, mas a minha existência, preciso atestar,
argumentar pela teologia, pela biologia e todas as outras ciências e religiões,
preciso provar teórica e empiricamente que acima do XX ou XY, existe uma pele,
um corpo, um cérebro, um coração e uma alma. Se o que definisse a humanidade
fosse a capacidade de amar, eu lutaria para ser reconhecida como um deles, no
entanto, pela minha experiência, a humanidade é definida pela capacidade de
ferir sem motivos, o corpo ou a alma de outros, pelo simples prazer de estar
certo. Inventamos roupas, inventamos penteados, inventamos nomes e pronomes, inventamos
normas de etiqueta e formas de convívio social, tudo isso é invenção humana, e
nenhuma dessas criações está listada em nenhum livro de biologia como causa ou
consequência da anatomia humana ou determinante em qualquer versão religiosa da
criação da vida.
A Lagarta deixou escapar uma sonora risada. Ofendida, Alice a encarou perplexa, mas após a gargalhada indiscreta e um bom trago em seu cigarro, a Lagarta a fitou, inundando seus olhos.
Lagarta: Se você sabe onde vai chegar, você trilha o caminho?
Alice: Eu
não sei. Isso depende.
Lagarta: Depende
de que?
Alice: De
onde vou chegar.
Lagarta: O
que importa? Você já conhece o fim, qual é o sentido de caminhar?
Alice: Não
entendo. O único fim possível pra mim lá fora é a morte.
A Lagarta apagou o cigarro na palma de sua própria mão, sem se abalar com a pequena queimadura. Fez uma longa e profunda pausa, olhando para o cigarro amassado e as cinzas que marcavam sua pele, sem notar o olhar marejado de Alice. Respirou fundo e com um cínico sorriso nos lábios, nem se dignou a olhar novamente para aquela jovem menina a sua frente.
Lagarta: Para escapar da morte, você escapa da vida?
Alice sentiu as lágrimas escorrendo pelo seu rosto e não se esforçou para impedi-las. Os passos da Lagarta foram lentos e dolorosos, conforme se afastava e deixava Alice sozinha debaixo do sorriso da Lua, apenas com seus pensamentos e suas lágrimas.
Trecho da peça teatral "Alice no País que Mais Mata Travestis" de Carla Luã Eloi, que foi inspirada no EP homônimo de Alice Guél, disponível completo no Spotify ou no Youtube
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