sábado, 5 de setembro de 2020

Quebrando a heteronormatividade em Once Upon a Time

Ambientada na cidade fictícia de Storybrooke, a série de TV Once Upon a Time retomou personagens clássicos dos contos de fadas recriando suas histórias de modo não tradicional. A série foi produzida pela ABC e cancelada em sua sétima temporada, em 2018. O enredo se embasa no fato que a amizade entre Regina – antes de se tornar a Rainha Má – e Branca de Neve culminou na morte do amado de Regina, as tornando inimigas. Consumida pelo desejo de vingança, Regina jogou uma maldição sobre todos os moradores da Floresta Encantada e todos eles foram trazidos para cá, para o nosso mundo, sem se lembrar de quem são e muito menos de quem amavam e aqui sua prisão seria o tempo. Quando a maldição foi lançada, Branca de Neve estava prestes a dar à luz a uma filha. Para salvá-la da maldição, ela a manda para outro mundo, um mundo sem magia. Segundo a profecia, esta mesma criança, no seu vigésimo oitavo aniversário voltaria e quebraria a maldição. Essa criança recebeu o nome de Emma Swan. 

Cartaz da versão brasileira de Once Upon a Time

SwanQueen é uma teoria que o assume que par perfeito para Emma é Regina e vice-versa, pela intensa tensão sexual insinuada pela série entre as duas, desde a primeira temporada, um ship que nunca se concretizou. A opção dos autores de sugerir o tempo todo um possível sentimento romântico entre as duas, para manter o público LGBTI+ interessado, prática conhecida como queerbaiting, e a sub-representação LGBTI+ na série, com a inserção de personagens lésbicas secundárias – praticamente figurantes – sem arco narrativo profundo, prática conhecida como tokenismo, não é novidade na cultura de mídia hegemônica, papeis micro, estereótipo ou silêncio, são os lugares que, ainda hoje, são destinados à este grupo. Essas práticas na série foram uma forma de garantir o nicho do mercado LGBTI+, sem perturbar demais as classes conservadoras, sem colocar um ship central em um relacionamento homoafetivo duradouro. Once Upon a Time é uma fantasia, uma ficção que, ao mesmo tempo em que se propõe a desconstruir o mundo dos contos de fadas, mantém discursos tradicionais desses contos. A heteronormatividade ainda é a base das opções estéticas da indústria cultural, uma vez que o mercado cultural reconhece que seus consumidores ainda são fundamentalmente conservadores. 


Cena da primeira temporada - primeiro indício de romance Swanqueen

Cena da quarta temporada - Emma se sacrifica por Regina


Não foi coincidência a maldição de Regina ter trazido os personagens para este mundo, foi para poder conservar a ‘moral’ e os modelos normatizados pela sociedade patriarcal. Numa série que se propõe a desconstruir a ideia romântica e tradicional que temos dos contos de fadas: de bem e mal, de princesa indefesa, de amor romântico como sinônimo de final feliz, parece totalmente contraditório pensar que amarras sociais do nosso mundo tenham o poder de criar limitações criativas para a construção de personagens. 

Nesse contexto de limitações, ascende uma nova categoria artística, as fanfics, popularizadas pelas novas mídias, realocam o lugar de espectador/leitor para um lugar de criador, limitadas apenas pelo suporte, mas no quesito criatividade, praticamente infinita de possibilidades, permitindo ao fã reconstruir a história de acordo com o seu olhar, com sua liberdade e interpretação. A fanfic, e suas variantes em outros suportes, possibilita uma grande liberdade para o criador-espectador, sua única limitação é sua própria ideologia, uma vez que quando falamos de fanfic, estamos falando muito mais do que o objeto artístico em si, mas da ação estética, do ato criador. A estética é parte da ação artística e a obra é resultado do processo das relações sociais e discursos produzidos, reproduzidos ou questionados pelos criadores. 


Acústico da música 'In Another Life' de Fyval, composta pela cantora como "uma música swanqueen".

As fanfics se constituem como desdobramento de uma história, gerando uma história nova, ambientada no mesmo cenário e com os mesmos personagens – podendo-se criar novos personagens – tendo como principal diferença, a construção da narrativa, que pode alterar completamente o rumo da história – o futuro, o presente e/ou o passado – as relações entre os personagens, etc. É a inserção dos membros do fandom nos processos criativos da história tal como as manips, fanvídeos, fanarts e até músicas, todas inseridas no mesmo contexto de recriação da história por fãs de uma história original – que pode ser livro, filme, série, anime, HQ, etc – apenas mudando o suporte. 


Fanart Swanqueen


Apesar da série ter sido cancelada – e mesmo durante seu período de vigência  a criação das fanfics permite que os fãs não conservadores possam ‘consertar’ os problemas e desigualdades de um mundo imperfeito, pelo menos, na ficção. SwanQueen não é um ship heteronormativo, por isso, não foi oficialmente canon na série, mas é o principal tema de criadores-espectadores quando se trata de fanfics. Quem busca SwanQueen em plataformas online como Spirit Fanfiction, Fanficion.net, Wattpad, busca não apenas contos literários, mas também a expectativa de que ‘em outra vida’, ficção e realidade sejam mais tolerantes às diversas formas de amor.

Não há barreiras estéticas e mesmo assim, em ficções, ainda vemos a realidade cruel e preconceituosa reproduzindo seus modelos e conceitos ideológicos. E tudo isso para agradar uma classe mais conservadora da sociedade – mesmo estatisticamente não sendo a maioria de espectadores da série – e seus discursos ideológicos. A partir do conservadorismo, surge uma legião de resistência, que continua no ciclo contínuo de criar e recriar. Fanfic se trata disso, da chance de arrumar o mundo fictício, do jeito que sua própria ideologia, consciente ou não, acha que a estética e/ou narrativa do mundo deveria ser, gerando as suas devidas repercussões sociais no nosso mundo, tendo em vista que a obra de arte e seus processos criativos são causa e consequência das relações humanas, sociais e políticas. Os discursos homofóbicos e as sub-representações de grupos marginalizados ainda são uma realidade no nosso mundo e, por causa deles, SwanQueen se trata de uma proposta de transformação, da criação de um mundo novo, no fictício e, principalmente, no real. 



Manip SwanQueen



Trecho adaptado do texto '"Swanqueen não é canon": fanfics, queerbating e tokenismo em Once Upon a Time' disponível completo aqui

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