domingo, 19 de abril de 2020

A misteriosa morte do cê-cedilha

Legendas
A = Agatha
C = Cassandra
E = Elizabeth
S = Sarah
T = Timóteo Salazar

            Assassinaram a cedilha. Não sei quem, não sei como. Amanheceu o dia, mas o cedilha não amanheceu conosco. Não foi manchete dos jornais, mas motivo de comentários o dia inteiro lá em casa. Eu fiquei abismado, Sarah, por exemplo, ficou arrasada, desolada, mas ela lamentava a perda, eu pensava no crime. Quem teria cometido essa atrocidade com o pobre coitado do cê-cedilha? Comecei um inquérito sigiloso sobre o crime, precisava de pistas, precisava de suspeitos, precisava tomar um cafezinho antes que eu desmaiasse...
            Finalmente reuni ânimos para anunciar minha incessante busca pelo assassino. Não queria ajuda, só queria que todas soubessem que se algo me acontecesse, eu não tinha seguro de vida, então que poderiam chorar livres do vínculo capitalista a minha morte. E meti-me entre os livros e dicionários para decifrar aquele enigma. Dirigi-me a biblioteca que havia em casa, e fui procurar entre as literaturas um dos inúmeros inimigos do cê-cedilha. Quantos inimigos foi arrumar esse bendito cê-cedilha. Uma infinidade de rivais, letras, pontos, números, Deus do céu!
            Por onde iniciar? Pensei. Mas e daí? Ficou só na pergunta mesmo, pois o cheiro de arroz queimado não me deixava prosseguir.  O mesmo cheiro que costumava sentir todas as segundas e quartas-feiras em que é a vez da Agatha cozinhar. Infelizmente era hora de comer, e o mistério da cedilha teria que esperar o arroz queimado ser digerido, e depois excretado, por falta de alternativas cabíveis.
            É importante ressaltar, neste momento em questão, que éramos quatro: Agatha, Sarah, Cassandra e eu. Quando digo eu, sou eu mesmo, Timóteo Salazar, uns chamam de Timóteo, outros de Salazar, atendo pelos dois. Mas éramos quatro, na mesma casa. Fica para uma próxima oportunidade comentar como acabamos juntos, a circunstância aqui é de luto, então, não cabe ao texto, mas que fique claro que éramos quatro, quatro criaturas opostas, que na maioria das vezes se repeliam, mas sem uns aos outros, a coisa piorava. Eu era o único homem sozinho no meio delas. Isso me dava certo prestígio, eu era o homem da casa, mas no fim, elas eram mais fortes, sozinhas ou unidas, e a TPM delas era no mesmo período.
            Suicídio! Pensei durante a tortura alimentícia, mas não sei bem se falava da cedilha, ou de mim mesmo, como maneira de me livrar para sempre do arroz da Agatha. Pois bem, tratemos da cedilha. Suicídio? Pensemos na possibilidade. O que levaria a cedilha a acabar com a própria vida? Talvez o desprezo. Sim o desprezo, ah pobre cedilha, era preferível torturar o português utilizando uma dupla de “s” do que usar o coitado do cê-cedilha. É verdade, o desprezo levaria qualquer código linguístico à depressão, veja o trema, por exemplo, tão desprezado (quase abominado) que acabou sendo expulso do idioma. Mas a cedilha sempre se demonstrava forte, aparecia às vezes no meio (ou pior, no início) de palavras com as quais não tinha nada a ver. O desprezo apenas não o levaria a tomar essa decisão.
            Não foi suicídio, cedilha foi assassinada. Agora me restava saber quem e por que. Eu tinha uma sacra suspeita do L, algo me dizia que o L estava intimamente ligado a morte da cedilha. Meti-me a investigar o L e também o P, que provavelmente teria sido testemunha, ou até mesmo cúmplice do crime. O L jurou não ter nada com aquilo, jurou não ter visto nada, jurou que se trocaria por R se estivesse mentindo. Pois bem, o P também não vira nada, não sabia de nada, não estava nem lá na hora do crime, disse que estava ao lado de outro P, que havia chamado o Q para entrar no meio. Era um bom álibi. Pois bem, mataram a cedilha, e se o L e P nada tinham com isso, só me restava um suspeito. Aguarde... Este parágrafo foi interrompido pelo suspense obrigatório, em alguns instantes voltaremos.
            Eu não fazia a mínima ideia de quem poderia ter cometido essa atrocidade com a pobre cedilha. Juro que pensava, mas não me vinha um nome qualquer do qual suspeitar. O cê-cedilha estava morto e eu precisava pensar em alguém. Subitamente, me vem Cassandra, atravessando a sala com uma bíblia, que só depois fui descobrir que era um caderno de macetes e comandos para jogos e programas de computador (ah viciada). Louca Cassandra, quase me matou de susto.

C— Gente, me ajuda, em nome de Deus.
T— Praga! Que susto você me deu! Não ta vendo que eu to concentrado?
C— Mas que ignorância com a coleguinha. Precisa tanto?
T— Fala peste, o que você quer?
C— Esse computador que a Liliane deixou aqui, o teclado dele é padrão inglês.
T— E eu com isso?
C— Deixa de ignorância, Timóteo, quando eu coloco esse teclado maluco em português, tudo muda de lugar, e o ponto interrogativo simplesmente some. Eu preciso do comando do ponto interrogativo no teclado numérico.
T— Você é uma toupeira mesmo, Cassandra, eu lá vou saber isso.

            Foi aí que me comecei a encaixar os fatos com os sopapos.

T— Como assim muda tudo de lugar?
C— O colchete aberto vira acento agudo, o colchete fechado vira colchete aberto, a barra deitada pra esquerda vira colchete fechado; os dois pontos viram cê-cedilha, o acento agudo vira acento circunflexo e o ponto interrogativo vira dois pontos. Mas não sei onde foi parar o ponto interrogativo.
T— O cedilha apareceu? Você não disse que ele não existia mais, praga?
C— Para de me chamar de praga, e o que eu disse foi que não tinha cedilha no teclado, não disse isso me referindo a todos os teclados do mundo.
T— Por que a Sarah estava chorando?
C— Você sabe o quão dramática essa garota é.
T— Então foram os dois pontos que mataram a cedilha. Acabou o mistério.         
C— E o ponto interrogativo?
T— E eu sei lá.

            Alívio foi o que sentiu minha alma, enfim pude deitar e tirar aquela soneca em paz. Claro, isso é figurativo; antes da minha terceira tentativa de fechar os olhos no sofá, ouvi aquele grito estridente.

C— Alt 63! Alt 63! O ponto interrogativo ta no alt 63!

            Deus, paciência.

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 Eu e as Mulheres - livro de Carla Luã Eloi


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