quarta-feira, 27 de março de 2019

Pra Onde Vão os LGBT’s Quietos?


Tem muita coisa absurda e louca acontecendo no Brasil e no mundo e eu tenho milhares de opiniões (argumentadas e fundamentadas) sobre muitas delas, mas, para eu não enlouquecer e voltar aos meus pontos fulminantes de quase me jogar no precipício do surto – assunto sobre o qual eventualmente vai ter um vídeo, episódio de podcast ou artigo aqui no blog, ainda não decidi qual suporte vou discutir esse assunto – decidi falar sobre algo menos terrível do que o cenário político brasileiro ou a situação de Moçambique, o que trago hoje não é uma crítica nem nada, é apenas uma reflexão sobre o meu lugar no meio LGBT+.

Esse artigo é mais um desabafo do que qualquer outra coisa e não vai resolver seus problemas com timidez e confiança. Se você quer ume namoradinhe, eu não vou te ajudar a conseguir ume, o que eu vou fazer é propor uma reflexão dos perigos da timidez e da falta de confiança quando se trata de relacionamentos, especialmente, se você é LGBT+ e se sente deslocado dentro do vale.

"Eu me identifico... como cansada"

O título deste artigo é uma frase da maravilhosa Hannah Gadsby, em seu espetáculo Nannete (disponível na Netflix, inclusive, imperdível, essencial eu diria). Antes de elaborar esse tópico, vamos deixar logo de cara algo bem claro: Não estou – e tenho certeza que a Hannah não estava – deslegitimando, de nenhuma maneira, os estilos de existência, celebração e militância de pessoas LGBT+ que são diferentes da minha, até porque seria hipocrisia demais da minha parte julgar um estilo de vida, quando o foco principal da minha luta é a liberdade para cada um existir e viver da forma que achar melhor, desde que não machuque a existência de ninguém. Então se você faz parte do grupo dos LGBT+ não quietos, não tem por que se sentir ofendido, isso não é um ataque ao estilo de vida de vocês e, sendo bem sincera, esse artigo não é sobre vocês.

Pra facilitar a digestão dessa torta de climão, vou chamar todas as identidades sexuais e de gênero englobadas pelo ALGBTQI+ de “migues do vale” ou apenas “migues”.

De uns tempos pra cá eu tenho me percebido cada vez mais isolada neste mundo, não que eu não tenha me sentido assim antes de me perceber como uma migue do vale, a diferença básica é que antes eu me sentia perdida no meio dos hétero/cis, hoje eu me sinto perdida no meio do vale. A porta do mundo LGBT+ é colorida, alegre, festiva, com muita música e diversão. Ir numa boate do vale pela primeira vez e já na porta começar a tocar Whitney, come on, não fica melhor do que isso. De fato, a música é definitivamente a melhor coisa de ir num bar/boate das migues (se bem que ouvi dizer que ta uma tal de festa gay com música sertaneja e fiquei bastante confusa com essa heterotização dos espaços gays, quer dizer, pra quem mora no interior, como eu, toda festa hétero ta tocando sertanejo, você não vai me obrigar a ouvir isso no vale, ta repreendido).

Balada gay com sertanejo? O que?

Além da música, tem uns bons drinks, não vou negar, dependendo da boate, caros, mas bons. Quando tem shows de drags cômicas, eu adoro. Mas particularmente, não tenho idade pra ir pra balada desde 1992 (quando eu nasci), então a luz piscando, ficar a noite toda, dançar com estranhos, chegar em uma mina interessante ou alguém chegar em você, ou algum tarado ou tarada passar a mão em você (é, essa merda de assédio não é exclusividade da heterotoplândia)... A experiência da boate do vale foi algo extremamente pontual na minha vida, duas, no máximo três vezes, e nas três, a única coisa de agradável que me recordo é da música.



Eu sou uma migue quieta e eu não sei pra onde ir. Meus programas preferidos envolvem cozinhar, jogar videogame, ver filmes, séries ou shows em DVD (ou na Netflix), basicamente, juntar amigos – ou ficar sozinha – em casa e fazer um role tranquilo. Quem sabe um barzinho, música ao vivo, ir ao teatro. Mas eis a questão, como conhecer alguém do vale, se 95% das pessoas do vale, são do universo bate estaca e você, basicamente, não é?



Todos os youtubers trans que eu sigo namoram, todos os garotos, garotas e garotes trans dos grupos que faço parte no whatsapp namoram, são pegadores ou “reis das mulheres” como um chamou a si mesmo. Você vai encontrar pelo youtube a fora algumas dessas pessoas trans falando sobre rejeição ou relacionamentos frustrados, inclusive, tendo como estopim a transfobia. Isso é real. Já fiz um vídeo sobre a solidão da pessoa trans e essa questão da rejeição por transfobia é muito comum, mas o que eu trago como foco nesse debate é algo que antecede a rejeição: o medo da rejeição.

Eu poderia reformular esse título, pra onde vão os LGBT+ tímidos. Onde estão as pessoas trans tem dificuldades em se relacionar, porque são tímidas?

Essa situação gera uma série de problemas, que eu demorei muitos anos pra reconhecer como problemas e simplesmente parar de alimentar. A experiência da boate LGBT+ não foi bacana na primeira vez, não foi bacana na segunda e não foi bacana nenhuma outra vez. Não porque não era legal, mas não era uma coisa que eu gostava de fazer, eu não queria estar ali, não fazia sentido pra mim, não era divertido pra mim, não era o meu estilo. Por que eu continuei me forçando a ir? Por que eu continuei tentando me encaixar naquele mundo? Eis a grande questão. Quando você acaba de se entender como LGBT+, você pensa: eu finalmente encontrei o meu lugar no mundo, eu finalmente encontrei ‘meu povo’, eu finalmente me encaixo. Quando você começa a viver a cultura desse povo e percebe que você também não se encaixa ali, o sentimento de desespero é absurdo, de repente você chutou a porta de um armário e gritou ‘eu não pertenço aqui, eu pertenço ao vale’, e aí o vale não é esse lugar que você pensava e você não se sente pertencente nele, cara, você literalmente sente o vazio de não pertencer a lugar nenhum.

Eu simplesmente precisava me encaixar, eu tinha que me fazer caber ali, eu tinha que me forçar a gostar de balada, de bate estaca e de tudo isso que eu já disse antes, que eu não gosto, porque o sentimento de não pertencimento, sem dúvida, é um dos piores que uma pessoa pode sentir, ainda mais quando não é pontual, quando é algo fixo na vida. Por isso eu me forcei a ir, por isso eu continuei tentando me encaixar.

A timidez ainda fode prejudica ainda mais. Quando você não é forte mentalmente, o que está intimamente ligado à autoestima e confiança, você acaba se sujeitando a uma série de formas diferentes de autodepreciação. Você não chega na mina, porque se acha feio demais, você não chega na mina, porque acha que ela vai te rejeitar, você não chega na mina (ou no mano, to falando muito mina, é porque é a minha versão dos fatos) porque você odeia tanto o seu corpo, que acha que ela vai odiar também. E se alguém chega em você, o sentimento não é nem de ‘deixa eu avaliar se eu me interesso por essa pessoa, se ela é legal’, o sentimento é de gratidão, alguém gosta de mim, eu tenho que fazer tudo que ela quiser pra ela não me deixar, eu preciso agradecer aos deuses e deusas por ela querer ficar comigo, porque ninguém mais vai me querer. Já previu o número de relacionamentos abusivos que você entra com um pensamento desses?

Já deixei uma mina levantar a voz e a mão pra mim. Já deixei a mina decidir por mim, já fiz coisas em relacionamentos que eu não queria, para não perder a pessoa caridosa que se apiedou da minha alma e fez o favor de se interessar por mim. Velho, que merda eu fiz da minha vida? Relacionamentos abusivos também são uma realidade no mundo LGBT+, lembrando, relação abusiva não é apenas agressão física, mas esse tipo de coisa também: chantagem emocional, terror psicológico e especialmente usar sua fraqueza – a timidez e a inexperiência – contra você, reforçando que você estaria perdido no mundo sem aquela pessoa.

Hoje eu não posso dizer com 100% de certeza que não entraria mais num jogo desses, numa manipulação emocional, sei que estou mais consciente dos tipos de riscos que me cercam por causa da timidez e dessa sensação de não pertencimento, mas ainda lido com timidez e confiança. Só que estou isolado, estou vivendo sozinho numa ilha, de um lado tem os héteros que não entendem e do outro lado os migues do vale da parte alta (da música alta), que também não entendem. Uma pessoa que não sofre com medo de rejeição vai sempre dizer “você precisa sair, você precisa falar, você precisa fazer”, bicha, qual parte você não ta entendendo que eu não sou fã de Beyonce – outro motivo de isolamento do vale – eu sou uma migue do vale fã de Diana Ross, ela é mais diva do que a sua, mas ela é discreta e os fãs dela também são discretos, diferente dos fãs da B. (soltei um shade aqui, caso não tenha notado).



Sou um LGBT+ quieto e não sei para onde ir, e não me diga app de pegação, porque ele tem o mesmo efeito da balada, não é pra mim. E mesmo assim, eu já cometi o mesmo erro que cometi antes, tentei me encaixar naquele espaço, que além de não ter nada a ver comigo, é extremamente padrãozinho, isso significa que todas as inseguranças sobre meu corpo, minha imagem, autoestima e tal são reforçadas ali e minha mente é massacrada sem misericórdia quando me submeto a entrar num negócio desse.

Não se iluda, relações abusivas não acontecem apenas entre casais, trisais e similares. Amizades podem ser abusivas e familiares também. Quando você está lidando com esses bugs de insegurança e baixa autoestima pra conseguir ume namorade, você automaticamente se torna muito dependente e apegada aos seus amigues, e às vezes, essas pessoas se aproveitam ou te fazem se sentir mais deslocados ainda. Se você, como eu, tem os amigues divididos numa proporção de 90% hétero top e 10% migues do vale bate estaca, você está fudido ferrado. Ou vão querer te levar pra balada hétero ou pra balada bate estaca, e guess what, você não quer ir em nenhum dos dois. O que acontece quando você não faz parte do role dos seus amigues? Você é isolado.

Se você conseguir responder sim pras essas três perguntas, você tem sorte, ainda não foi pego pelo isolamento e a solidão.

- Se você se sentir triste e sozinho e quiser conversar com alguém no meio da madrugada, você tem alguém na sua lista do whatsapp que você pode chamar?
- Quando você chamar essa pessoa no whatsapp, ela vai estar 100% disposta a conversar com você, sem reclamar que você incomodou ela de madrugada?
- O assunto que você vai conversar com ela, ela vai entender, porque é algo que ela também vive ou no mínimo tem empatia, e vai poder te aconselhar sem te fazer se sentir pior?

Recentemente, perdi alguns amigues e conhecides pelo suicídio, motivados ou agravados pela solidão. Faziam parte dos LGBT+ quietos. Ser e existir enquanto LGBT+ numa sociedade hetero/cisnormativa que te quer morto, é foda difícil o bastante, mas ainda por cima não se sentir parte ou acolhido dentro do próprio vale, é insustentável. Se sentir pertencente é extremamente importante, porque fazer parte de um grupo, que vive experiências parecidas, que entende como você se sente, porque também se sente assim, é uma rede de apoio fundamental para sobrevivência. Eu não vou nem entrar na questão da negritude aqui, porque dos meus amigos trans, se dois são negros são muitos.

Atualmente eu estou abraçando esse isolamento, como meu próprio voto de silêncio, então não estou atualmente nem com paciência pra esclarecer diariamente que não sou um homem trans, mas sim uma pessoa trans não binária, não estou com paciência pra inventar justificativas pra não sair pros lugares que não quero ir, com pessoas que não quero ir ou com as que eu quero estar, mas não quero sair no dia. E quanto mais faço isso, mais me isolo, mais me desloco. Eu sei o quão perigoso esse isolamento pode ser pra mim, quantas vezes a vontade de encerrar a própria vida me consumiu não por causa do isolamento, mas agravada por ele. Minha sugestão pra lidar com essa questão é, não mude quem você é, não finja ser ou gostar do que você não é ou não gosta, você não tem que mudar seus gostos, você tem que mudar de amigos. Sei que isso é processo, por isso, se você não acha que vai conseguir lidar com a solidão e o isolamento, você pode tetar buscar um ponto de equilíbrio, onde você precisa ceder ao mundo dos bate estaca de vez em quando, até estar completamente confortável em viver no seu próprio mundo, com novos amigues que gostem dos mesmos roles que você. Eu já cedi o suficiente, hoje eu estou de boa no meu mundo quieto e silencioso, sem luzes piscando, eu, meu gatinho, um bom vinho e Diana Ross, não fica melhor do que isso.

não mude quem você é, não, não

Sobre a insegurança, a falta de confiança e baixa autoestima, primeira coisa, reconheça-as como um problema, pra poder buscar as ferramentas adequadas pra lidar com isso de forma saudável e trabalhar pra melhorar sua autoestima e sua confiança e principalmente, prevenir relações abusivas. Acredite, você vai encontrar seu lugar no vale, tem um cantinho para os quietos, como eles são quietos é mais difícil encontrá-los, mas eles existem, e você não está sozinho, você não está perdido neste mundo – talvez só temporariamente – existe um lugar pra você, você vai se encontrar e se sentir acolhido e pertencente. Até lá, aproveite esse tempo para apreciar sua própria companhia, isso já é metade do caminho andado para se valorizar e se amar e se sentir bom o bastante, pra não duvidar de si mesme, e se respeitar. Apreciar sua própria companhia vai te ajudar não apenas a ter mais confiança e autoestima, pra se sentir seguro de buscar a companhia de outras pessoas, como vai te ajudar a não se sujeitar a entrar em um relacionamento que não vai ser bom pra você, sabe por quê, olha que coisa, porque você vai se valorizar, e vai saber que você não tem que ser grate por alguém se interessar por você, porque você é maravilhose.



Eu não sei pra onde os LGBT+ quietos vão, só sei que eles existem, Hannah Gadsby é uma delas e ta com um material incrível sobre a existência dela na Netflix, eu existo e to com um material não sei se é incrível sobre a minha existência no Youtube, Soundcloud, Wattpad e aqui no blog, e se você é um deles, um dos LGBT+ quietos, tamos aberto para amizade (ou namoro também, quem sabe, rsrs).

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