terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O mito da miscigenação no Brasil



O mito da miscigenação no Brasil
Por Carla Luã Eloi[1]


Não vou adentrar na história da colonização brasileira, porque até 2016 todo mundo teve aulas de história. Acredito que fica claro para todos que a miscigenação brasileira não foi uma grande festa, onde índios e negros foram convidados a participar. A miscigenação foi oriunda de muita violência e estupros. Diferente do que vocês podem ver em séries e novelas de TV, a escravidão não foi uma suruba, foi o pior momento da história do país. Muito sangue foi derramado, corpos foram brutalmente violados e, o que mais nos interessa neste artigo, toda uma variedade de povos e tribos africanas – misturadas como se fossem uma grande massa negra e homogênea – e uma variedade enorme de culturas foram demonizados e massacrados.
O processo de catequização foi o primeiro grande demonizador da cultura indígena e negra. Os portugueses acreditavam que a cultura dos “selvagens” – no sentido mais amplo de cultura – era demoníaca e imoral, por isso, devia ser purgada das terras que invadiram e das almas das pessoas que eles sequestraram para escravizar. Seus corpos bronzeados e escuros, seus traços curvilíneos e desnudos, seus cabelos encrespados, seus tecidos de amarração, sua dança sensual, seu batuque e cantos ancestrais, suas ervas curativas, sua religião cheia de cores, sua língua, seus jeitos de vestir e andar, tudo isso – talvez essa parte tenha sido omitida quando falamos no encontro de culturas que aconteceu no Brasil – não foi visto como cultura. Os escravos eram negros sem alma, sub-humanos que não mereciam direitos e nem ser tratados como os brancos, viram pouco a pouco sua cultura ser demonizada, inferiorizada e criminalizada. Os deuses africanos viram suas mulheres e filhas serem estupradas, seus homens e filhos serem espancados e chicoteados até sua pele rasgar. O fruto desse massacre cultural foi a miscigenação. O povo brasileiro é filho de estupros, seu chão é regado de sangue de negros e índios, sua cultura é feita em cima dos destroços de outras culturas.
Também não vou entrar no mérito das misturas e encontros. Não sei sequer se acredito em uma total dizimação cultural, porque a cultura é uma estrutura completa, da base à pintura e muita coisa conseguiu resistir. No entanto, não estamos falando de doze anos de escravidão, estamos falando de mais de quatrocentos anos. O tempo de repressão, opressão e mutilação foi desgastando a pintura, rachaduras foram aparecendo na estrutura, a base foi muito abalada. A cultura é algo mutável, o que não é nenhum pouco ruim, no entanto, o que estamos analisando aqui não é o que foi gerado culturalmente, mas sim a forma como tudo aconteceu.
O que era nosso, desde do nosso cabelo, nosso rebolado até nosso samba no pé, após a escravidão, foi criminalizado. Ah, tia Ciata, “o chefe da folia, pelo telefone, mandou avisar”[2], que sua casa foi o refúgio da raiz cultural negra, a casa onde o samba pode sobreviver, enquanto lá fora, a capoeira, o batuque, o samba, a cannabis, tudo isso, se tornara crime, um atentado ao pudor, a ordem e a moral da sociedade. A miscigenação aconteceu, sim, realmente. Mas não houve uma mistura genética que tenha permitido uma mistura social. Eu chamaria de uma miscigenação hierárquica. As cores e as etnias se misturaram e geraram novas cores, mas nenhuma mistura permitiu alterações na cadeia social, a mistura não deu acesso aos privilégios do grupo do topo da pirâmide. A começar por uma história de escravidão de negros e negras no Brasil, que tem como registro literário mais famoso uma obra protagonizada por uma escrava branca. Até na nossa própria história, nos tiraram o protagonismo.
Já ouviu falar de colorismo[3]? Quanto mais escuro for a sua pele, mais discriminação você sofrerá e quanto mais claro for seu tom de pele, ou seja, quanto mais sua pele se aproximar da branquitude, menos discriminação você sofrerá. O colorismo é o que vivemos no Brasil ainda hoje. Ele não está preocupado com sua árvore genealógica ou com as misturas genéticas que formam o seu DNA, racismo no Brasil é definido pela cor da sua pele. Estou falando de negritude em geral, porque se eu for fazer o recorte para a negritude da mulher, teremos que falar dos tipos de racismo de acordo com o colorismo. A “mulata”[4], termo terrível usado para designar a negra objeto sexual que atende e a agrada o desejo branco, é a negra de pele clara, com traços mais finos, mas que ainda possui as características estereotipada da negra “desejável”: bunda grande, peito grande e um grande sex appeal. Não à toa o estereótipo da “mulata” é o cartão postal do Brasil, terra do carnaval, da festa da carne, o único período do ano que o negro é exaltado, como um pedaço de carne nu dançando pintado na tela da TV no meio deste povo.   
A negra é aceita enquanto objeto sexual, enquanto a “mulata” – não usem esse termo, ele é muito pejorativo – do carnaval, para sexo, não para o amor, o negro para o trabalho braçal, não para o intelecto, para a festa da carne, não para qualquer outra coisa que ele quiser fazer. A negritude no Brasil faz o pão e o circo da branquitude. E o cara que “pega” a “morena” no carnaval, vai usar isso pra explicar que ele não é racista. Ele só não sabe explicar por que não tem um relacionamento sério com ela, vai dizer que é questão de gosto[5]. A sinhá que é pra casar, a negra é só pela carne. A história continua.
E qual é o problema nisso tudo? O que tudo isso tem a ver com miscigenação? Eu explico. O discurso mais desonesto usado por brancos para deslegitimar a luta negra é a miscigenação. Nós dizemos apropriação cultural[6] e eles dizem: miscigenação[7]. Antes de esvaziar todo um conceito, uma causa e uma luta histórica, contra um preconceito estrutural, ou seja, que está em toda a estrutura, atingindo todo um grupo, deixa eu explicar algumas coisas pra você, querido branco que pergunta por que não tem consciência branca. Racismo é algo estrutural: significa que cada ação discriminatória inferida contra a minha pessoa dada a minha etnia negra, não é um ato pessoal, é um ato institucional, é como se fosse regra de atendimento ao cliente. Vamos comparar.
Você começa a trabalhar na empresa e tem um treinamento, onde te ensinam a tratar o cliente com um sorriso no rosto, muita educação e simpatia. Com o passar do tempo, você mentaliza, absorve e literalmente mecaniza essa ação. Todo e qualquer cliente você trata do mesmo jeito. O cliente sai falando bem da empresa, dizendo que o atendente foi simpático com ele e ele se sente bem por isso, mas você não o tratou bem porque gostou dele, não foi pessoal, é institucional, é a estrutura daquela organização que te treina para agir assim. Assim funciona o racismo. A sociedade, desde a época da colonização tem perpetuado a maneira de tratarmos negros na sociedade. Você é treinado dentro da estrutura para achar suspeito qualquer homem negro que se aproxima de você. Você é treinado para achar que o negro vai roubar você, para achar que o cabelo crespo é ruim e feio, que o negro não tem traços de beleza, por isso, não é capaz de se atrair por uma pessoa negra, você é treinado para achar que turbante no negro é coisa de “macumba”, você é treinado para ver dread em negro como uma imagem suja, seu imaginário é treinado a ler um livro e imaginar personagens brancos, a menos que te seja dito que ele é negro.  Seu gosto é moldado, seu imaginário é moldado, seus conceitos são moldados. Esse é o treinamento, a estrutura da empresa precisa dos seus funcionários para funcionar. Você é apenas um instrumento de propagação.
Quando eu sofro racismo, alguém me olha torto quando eu entro num lugar ou o segurança me segue na loja ou a polícia me para ou quando falam que sou feia por causa do meu cabelo, quando alguém diz que eu sirvo pra comer e não pra namorar, não é pessoal, é uma coisa inerente a todo o meu grupo social, é um tipo de ação que acontece repetidamente, com distintas pessoas praticando e distintas pessoas sendo vítima. É estrutural. Quando toda um grupo social nasce, cresce, reproduz ou não, e morre ouvindo que deve alisar seu cabelo – vulgo, parecer mais com um branco – para ficar bonito, afinar seus traços em tutorial de maquiagem, para ser mais bonito, etc, ou seja, somos convencidos que nossos corpos e culturas são inferiores e que se quisermos “evoluir” devemos nos aproximar o quanto pudermos da cultura “superior”, ou seja, dos brancos, não querido, isso não é apropriação cultural. Isso é o verdadeiro resultado da miscigenação hierárquica, é o colorismo, é o embranquecimento do país.
A miscigenação gera uma ilusão de igualdade, quando na verdade, ela cria novas classificações hierárquicas, mas os brancos continuam no topo. Como toda hierarquia, não há igualdade, há uma luta de classes, no caso, de grupos sociais, dos que estão na base e centro da pirâmide, fazendo de tudo para ascender socialmente, enquanto o topo da pirâmide faz o que pode – e o que não pode – para garantir seu lugar no topo, mantendo seus privilégios. A estrutura foi muito bem construída para manter nos negros a sensação de inferioridade e o desejo de ascensão, por isso, ele segue o manual de embranquecimento, aceita a imposição cultural.
“Ah, mas tem negro cristão isso é apropriação cultural”. Como pode ser apropriação cultural uma coisa que chegou aqui e matou tanta gente, dizendo que ou era de Jesus ou era do diabo e devia ser purgado? Como pode ser apropriação cultural uma coisa que queimou pessoas em grande parte do ocidente, inclusive no Brasil, que não praticassem essa religião? É o cúmulo da desonestidade fingir que não consegue compreender a diferença entre imposição cultural e apropriação cultural.
Afinal, o que é apropriação cultural? Primeira coisa, não se atreva a usar relações assimétricas ou falar de racismo reverso, que existe tanto quanto o estado laico. Você pode dizer que quando um branco sofre algum tipo de ataque discriminatório, pontual e isolado, você pode, simetricamente, dizer que o que ele sofreu é uma ação estrutural, que atinge diariamente e historicamente todo o grupo social branco? Não. Então, não é racismo reverso. Racismo é estrutural, sempre, se não é estrutural, não é racismo. Ponto. Gosto da Wanda Sykes[8] chamar de carma o que chamam de racismo reverso, o medo de ser tratado como brancos tratam negros. Então, não esvaziemos todo uma luta, toda uma história, toda uma estrutura de desigualdades que faz da miscigenação, não uma mistura de tintas que gera novas cores homogêneas, mas uma mistura de água e óleo, que não permite que se ultrapasse as barreiras hierárquicas que os separam. O discurso da miscigenação é um discurso muito vazio e desonesto, como eu disse antes, normalmente usado por brancos, como se a mistura de raças e culturas promovesse a igualdade social e o acesso igualitário aos privilégios desfrutados pelos brancos nessa sociedade.
Apropriação cultural é a utilização de um objeto ou costume de uma sociedade, povo ou cultura diferente da sua. Problemas com isso? Só quando você pode usar tal objeto sem ser demonizado ou inferiorizado e eu não. Quando em você o objeto é exótico, é símbolo de beleza e moda e em mim é sujeira, macumba ou criminoso. Dreads em brancos: lindo. Dreads em negro: sujo. Turbante em branco: exótico. Turbante em negro: chuta que é macumba. Acho que já deu pra entender. O problema não é a apropriação, o problema é assimetria nos discursos. Se a cultura gerada pelo encontro forçado entre portugueses, índios e negros, desse a todos os mesmos privilégios dos brancos, se a miscigenação biológica fosse também social, quebrando hierarquias e gerando igualdade racial, aí sim, não haveria tanto problema com a apropriação cultural. O problema não é você usar, o problema é que a sociedade aceita você usando, mas não me aceita usando.
O tal caso da negra que mandou a branca tirar o turbante. Polêmica. Se tivesse a mesma polêmica pra crianças negras de cabelo crespo que foram convidadas a cortar para permanecer em algumas escolas; ou pessoas negras que em seus empregos foram solicitadas a alisar seus blacks; ou cada pessoa negra que viu seu terreiro ser depredado e foi agredida física e verbalmente por estar de branco numa sexta-feira ou de turbante na cabeça; ou para um cara de dreads na rua que foi chamado de maconheiro e parado pela polícia... Como o discurso muda, não é? Talvez ninguém tenha dito para os diretores dessas escolas e para os empregadores dessas pessoas, nem mesmo para a polícia e os outros agressores dessa galera, que podemos usar o que quisermos, como dizem para os brancos sobre usar turbante, dreads e fantasia de nega maluca.
“Não existe racismo, somos todos iguais” se somos todos iguais por que você, branco, pode usar turbante e eu, negra, não posso? O discurso não é simétrico. Por que um turbante só vira polêmica na cabeça da branca e nunca das pessoas negras xingadas de “macumbeiros do diabo” no metrô? A apropriação cultural se torna um problema se a sociedade continua perpetuando desigualdades e demonizando a cultura negra, no negro. Como isso aconteceu, eu nunca saberei, mas a cultura do negro se tornou endeusada quando vivenciada por brancos. Quem não adora Amy Winehouse, Joss Stone, Elvis Presley, Eminem, MC Guimê, Diogo Nogueira? Rostinhos brancos cantando música negra, ritmos negros, músicas feitas por negros. Adoram a nossa cultura, só não adoram a gente. Procura no Google dreads lindos ou tutorial de turbante. É muito imaturo reduzir todo o contexto e discussão sobre apropriação cultural a se branco pode ou não usar turbante. A questão não é essa e nunca foi. Ninguém se importa com branco de turbante, o que devia importar é o negro tomar pedrada quando usa.
A branquitude continua sendo a protagonista das histórias, protagonistas de polêmicas onde negros são sempre os vilões, enquanto banalizam o assassinato de negros pelas mãos da polícia e os outros absurdos que os negros passam todos os dias neste país. Novamente, brancos explorando riquezas alheias, neste caso, nossa riqueza cultural, enquanto nós continuamos morrendo nos becos, no anonimato, sem polêmica e “sem cultura”, inferiores e demonizados, sem podermos desfrutar da nossa própria riqueza.
Racismo reverso, miscigenação e igualdade racial são discursos muito perversos e esvaziados, discursos que surgem sempre que um branco se incomoda quando dizemos a verdade: que não há consciência branca, porque branco não tem consciência e não quer ter. Um medo desgraçado de ser tratado como, historicamente, brancos tratam negros. Argumentos assimétricos inaceitáveis, que tentam comparar um ato isolado e pontual a todo um histórico de opressões vividas por negros, argumentos que tentam justificar a manutenção desses preconceitos e desigualdades, para que os brancos não percam seus privilégios e os negros continuem em seus lugares inferiores, calando a boca e abaixando a cabeça toda vez que um branco se sentir desconfortável. A história continua. A escravidão acabou, mas mantém seus mesmos personagens, seu mesmo enredo e sua mesma direção e tal como na obra mais famosa sobre escravidão no Brasil, os protagonistas ainda são os brancos.


[1] Carla Eloi é graduada em Produção Cultural pelo IFRJ em 2014, especialista em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação. Texto escrito e publicado em 14 de fevereiro de 2017. Miracema, RJ. Brasil.
[2] Pelo Telefone: Considerado o primeiro samba gravado no Brasil, no quintal de Tia Ciata. 1916. Composto por Donga e Mauro Almeida.
[3] Colorismo: texto de referência “Colorismo: o que é e como funciona” de Aline Djokic <disponível em http://blogueirasnegras.org/2015/01/27/colorismo-o-que-e-como-funciona/>
[4] Mulata: “é uma derivação da palavra “mula”, [...] resultado do cruzamento do jumento com o cavalo. Inúmeros registros etmológicos indicam que foi há mais ou menos 400 anos, ou seja, durante o período escravatista brasileiro, que essa palavra começou a ser usada para se referir aos filhxs de negrxs com brancxs [...] Naquela época, uma pessoa nascida de um cruzamento percebido como no mínimo insólito, assim como no caso do animal, era tida como um híbrido, nem brancx nem pretx e por isso exigia uma classificação à parte. Uma classificação limitante e preconceituosa, mas que infelizmente insiste em se manter no vocabulário do brasileiro com o passar do tempo” (Cris O, 2013). <disponível em http://blogueirasnegras.org/2013/06/26/palavra-mulata/>
[5] Gosto, solidão da mulher negra e preterimento: Texto de referência “A solidão tem cor” de Anna Beatriz Anjos e Jarid Arraes <disponível em http://www.revistaforum.com.br/semanal/a-solidao-tem-cor/>.
[6] Apropriação Cultural: Texto de referência “A cultura negra é popular, mas as pessoas negras não” de Aline Silveira <disponível em http://blogueirasnegras.org/2015/02/18/a-cultura-negra-e-popular-mas-as-pessoas-negras-nao/>. [editado 15/02/2017] Vídeo complementar: "Mulher branca pode usar turbante?" da página Tia Má no facebook <disponível em https://www.facebook.com/dicasdatiama/videos/vb.1034691449898844/1426089577425694/?type=2&theater>.  [fim da edição 15/02/2017]
[7] Miscigenação: Texto de referência: “A miscigenação racial no Brasil” de Sueli Carneiro <disponível em http://www.geledes.org.br/miscigenacao-racial-brasil/#gs.MmnP4zk>.
[8] Wanda Sykes: atriz e comediante, que em uma apresentação de seu Stand-Up, falou sobre racismo reverso <disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bPp6es8W72U>

Um comentário:

  1. Muito bom mesmo!!!!!!!!!! Papo direto e reto, só não entende quem não quer!

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