O
mito da miscigenação no Brasil
Por Carla Luã Eloi[1]
Não vou adentrar na
história da colonização brasileira, porque até 2016 todo mundo teve aulas de
história. Acredito que fica claro para todos que a miscigenação brasileira não
foi uma grande festa, onde índios e negros foram convidados a participar. A
miscigenação foi oriunda de muita violência e estupros. Diferente do que vocês
podem ver em séries e novelas de TV, a escravidão não foi uma suruba, foi o
pior momento da história do país. Muito sangue foi derramado, corpos foram
brutalmente violados e, o que mais nos interessa neste artigo, toda uma
variedade de povos e tribos africanas – misturadas como se fossem uma grande
massa negra e homogênea – e uma variedade enorme de culturas foram demonizados e
massacrados.
O processo de
catequização foi o primeiro grande demonizador da cultura indígena e negra. Os
portugueses acreditavam que a cultura dos “selvagens” – no sentido mais amplo
de cultura – era demoníaca e imoral, por isso, devia ser purgada das terras que
invadiram e das almas das pessoas que eles sequestraram para escravizar. Seus
corpos bronzeados e escuros, seus traços curvilíneos e desnudos, seus cabelos
encrespados, seus tecidos de amarração, sua dança sensual, seu batuque e cantos
ancestrais, suas ervas curativas, sua religião cheia de cores, sua língua, seus
jeitos de vestir e andar, tudo isso – talvez essa parte tenha sido omitida
quando falamos no encontro de culturas que aconteceu no Brasil – não foi visto
como cultura. Os escravos eram negros sem alma, sub-humanos que não mereciam
direitos e nem ser tratados como os brancos, viram pouco a pouco sua cultura
ser demonizada, inferiorizada e criminalizada. Os deuses africanos viram suas
mulheres e filhas serem estupradas, seus homens e filhos serem espancados e
chicoteados até sua pele rasgar. O fruto desse massacre cultural foi a
miscigenação. O povo brasileiro é filho de estupros, seu chão é regado de
sangue de negros e índios, sua cultura é feita em cima dos destroços de outras
culturas.
Também não vou entrar no
mérito das misturas e encontros. Não sei sequer se acredito em uma total dizimação
cultural, porque a cultura é uma estrutura completa, da base à pintura e muita
coisa conseguiu resistir. No entanto, não estamos falando de doze anos de
escravidão, estamos falando de mais de quatrocentos anos. O tempo de repressão,
opressão e mutilação foi desgastando a pintura, rachaduras foram aparecendo na
estrutura, a base foi muito abalada. A cultura é algo mutável, o que não é nenhum
pouco ruim, no entanto, o que estamos analisando aqui não é o que foi gerado culturalmente,
mas sim a forma como tudo aconteceu.
O que era nosso, desde do
nosso cabelo, nosso rebolado até nosso samba no pé, após a escravidão, foi
criminalizado. Ah, tia Ciata, “o chefe da folia, pelo telefone, mandou avisar”[2], que sua casa foi o
refúgio da raiz cultural negra, a casa onde o samba pode sobreviver, enquanto
lá fora, a capoeira, o batuque, o samba, a cannabis, tudo isso, se tornara
crime, um atentado ao pudor, a ordem e a moral da sociedade. A miscigenação
aconteceu, sim, realmente. Mas não houve uma mistura genética que tenha
permitido uma mistura social. Eu chamaria de uma miscigenação hierárquica. As
cores e as etnias se misturaram e geraram novas cores, mas nenhuma mistura permitiu
alterações na cadeia social, a mistura não deu acesso aos privilégios do grupo
do topo da pirâmide. A começar por uma história de escravidão de negros e
negras no Brasil, que tem como registro literário mais famoso uma obra protagonizada
por uma escrava branca. Até na nossa própria história, nos tiraram o
protagonismo.
Já ouviu falar de
colorismo[3]? Quanto mais escuro for a
sua pele, mais discriminação você sofrerá e quanto mais claro for seu tom de
pele, ou seja, quanto mais sua pele se aproximar da branquitude, menos discriminação
você sofrerá. O colorismo é o que vivemos no Brasil ainda hoje. Ele não está
preocupado com sua árvore genealógica ou com as misturas genéticas que formam o
seu DNA, racismo no Brasil é definido pela cor da sua pele. Estou falando de
negritude em geral, porque se eu for fazer o recorte para a negritude da
mulher, teremos que falar dos tipos de racismo de acordo com o colorismo. A
“mulata”[4], termo terrível usado para
designar a negra objeto sexual que atende e a agrada o desejo branco, é a negra
de pele clara, com traços mais finos, mas que ainda possui as características estereotipada
da negra “desejável”: bunda grande, peito grande e um grande sex appeal. Não à toa o estereótipo da
“mulata” é o cartão postal do Brasil, terra do carnaval, da festa da carne, o
único período do ano que o negro é exaltado, como um pedaço de carne nu
dançando pintado na tela da TV no meio deste povo.
A negra é aceita enquanto
objeto sexual, enquanto a “mulata” – não usem esse termo, ele é muito
pejorativo – do carnaval, para sexo, não para o amor, o negro para o trabalho
braçal, não para o intelecto, para a festa da carne, não para qualquer outra
coisa que ele quiser fazer. A negritude no Brasil faz o pão e o circo da
branquitude. E o cara que “pega” a “morena” no carnaval, vai usar isso pra
explicar que ele não é racista. Ele só não sabe explicar por que não tem um
relacionamento sério com ela, vai dizer que é questão de gosto[5]. A sinhá que é pra casar,
a negra é só pela carne. A história continua.
E qual é o problema nisso
tudo? O que tudo isso tem a ver com miscigenação? Eu explico. O discurso mais
desonesto usado por brancos para deslegitimar a luta negra é a miscigenação.
Nós dizemos apropriação cultural[6] e eles dizem: miscigenação[7]. Antes de esvaziar todo um
conceito, uma causa e uma luta histórica, contra um preconceito estrutural, ou
seja, que está em toda a estrutura, atingindo todo um grupo, deixa eu explicar
algumas coisas pra você, querido branco que pergunta por que não tem
consciência branca. Racismo é algo estrutural: significa que cada ação discriminatória
inferida contra a minha pessoa dada a minha etnia negra, não é um ato pessoal,
é um ato institucional, é como se fosse regra de atendimento ao cliente. Vamos
comparar.
Você começa a trabalhar
na empresa e tem um treinamento, onde te ensinam a tratar o cliente com um
sorriso no rosto, muita educação e simpatia. Com o passar do tempo, você
mentaliza, absorve e literalmente mecaniza essa ação. Todo e qualquer cliente
você trata do mesmo jeito. O cliente sai falando bem da empresa, dizendo que o
atendente foi simpático com ele e ele se sente bem por isso, mas você não o
tratou bem porque gostou dele, não foi pessoal, é institucional, é a estrutura
daquela organização que te treina para agir assim. Assim funciona o racismo. A
sociedade, desde a época da colonização tem perpetuado a maneira de tratarmos
negros na sociedade. Você é treinado dentro da estrutura para achar suspeito
qualquer homem negro que se aproxima de você. Você é treinado para achar que o
negro vai roubar você, para achar que o cabelo crespo é ruim e feio, que o
negro não tem traços de beleza, por isso, não é capaz de se atrair por uma
pessoa negra, você é treinado para achar que turbante no negro é coisa de
“macumba”, você é treinado para ver dread em negro como uma imagem suja, seu
imaginário é treinado a ler um livro e imaginar personagens brancos, a menos
que te seja dito que ele é negro. Seu
gosto é moldado, seu imaginário é moldado, seus conceitos são moldados. Esse é
o treinamento, a estrutura da empresa precisa dos seus funcionários para
funcionar. Você é apenas um instrumento de propagação.
Quando eu sofro racismo,
alguém me olha torto quando eu entro num lugar ou o segurança me segue na loja
ou a polícia me para ou quando falam que sou feia por causa do meu cabelo,
quando alguém diz que eu sirvo pra comer e não pra namorar, não é pessoal, é
uma coisa inerente a todo o meu grupo social, é um tipo de ação que acontece
repetidamente, com distintas pessoas praticando e distintas pessoas sendo
vítima. É estrutural. Quando toda um grupo social nasce, cresce, reproduz ou
não, e morre ouvindo que deve alisar seu cabelo – vulgo, parecer mais com um
branco – para ficar bonito, afinar seus traços em tutorial de maquiagem, para
ser mais bonito, etc, ou seja, somos convencidos que nossos corpos e culturas
são inferiores e que se quisermos “evoluir” devemos nos aproximar o quanto
pudermos da cultura “superior”, ou seja, dos brancos, não querido, isso não é
apropriação cultural. Isso é o verdadeiro resultado da miscigenação hierárquica,
é o colorismo, é o embranquecimento do país.
A miscigenação gera uma
ilusão de igualdade, quando na verdade, ela cria novas classificações
hierárquicas, mas os brancos continuam no topo. Como toda hierarquia, não há
igualdade, há uma luta de classes, no caso, de grupos sociais, dos que estão na
base e centro da pirâmide, fazendo de tudo para ascender socialmente, enquanto
o topo da pirâmide faz o que pode – e o que não pode – para garantir seu lugar
no topo, mantendo seus privilégios. A estrutura foi muito bem construída para
manter nos negros a sensação de inferioridade e o desejo de ascensão, por isso,
ele segue o manual de embranquecimento, aceita a imposição cultural.
“Ah, mas tem negro
cristão isso é apropriação cultural”. Como pode ser apropriação cultural uma
coisa que chegou aqui e matou tanta gente, dizendo que ou era de Jesus ou era
do diabo e devia ser purgado? Como pode ser apropriação cultural uma coisa que
queimou pessoas em grande parte do ocidente, inclusive no Brasil, que não
praticassem essa religião? É o cúmulo da desonestidade fingir que não consegue
compreender a diferença entre imposição cultural e apropriação cultural.
Afinal, o que é
apropriação cultural? Primeira coisa, não se atreva a usar relações
assimétricas ou falar de racismo reverso, que existe tanto quanto o estado
laico. Você pode dizer que quando um branco sofre algum tipo de ataque
discriminatório, pontual e isolado, você pode, simetricamente, dizer que o que
ele sofreu é uma ação estrutural, que atinge diariamente e historicamente todo
o grupo social branco? Não. Então, não é racismo reverso. Racismo é estrutural,
sempre, se não é estrutural, não é racismo. Ponto. Gosto da Wanda Sykes[8] chamar de carma o que
chamam de racismo reverso, o medo de ser tratado como brancos tratam negros. Então,
não esvaziemos todo uma luta, toda uma história, toda uma estrutura de
desigualdades que faz da miscigenação, não uma mistura de tintas que gera novas
cores homogêneas, mas uma mistura de água e óleo, que não permite que se
ultrapasse as barreiras hierárquicas que os separam. O discurso da miscigenação
é um discurso muito vazio e desonesto, como eu disse antes, normalmente usado
por brancos, como se a mistura de raças e culturas promovesse a igualdade
social e o acesso igualitário aos privilégios desfrutados pelos brancos nessa
sociedade.
Apropriação cultural é a
utilização de um objeto ou costume de uma sociedade, povo ou cultura diferente
da sua. Problemas com isso? Só quando você pode usar tal objeto sem ser
demonizado ou inferiorizado e eu não. Quando em você o objeto é exótico, é símbolo
de beleza e moda e em mim é sujeira, macumba ou criminoso. Dreads em brancos:
lindo. Dreads em negro: sujo. Turbante em branco: exótico. Turbante em negro:
chuta que é macumba. Acho que já deu pra entender. O problema não é a
apropriação, o problema é assimetria nos discursos. Se a cultura gerada pelo
encontro forçado entre portugueses, índios e negros, desse a todos os mesmos
privilégios dos brancos, se a miscigenação biológica fosse também social,
quebrando hierarquias e gerando igualdade racial, aí sim, não haveria tanto
problema com a apropriação cultural. O problema não é você usar, o problema é que
a sociedade aceita você usando, mas não me aceita usando.
O tal caso da negra que
mandou a branca tirar o turbante. Polêmica. Se tivesse a mesma polêmica pra
crianças negras de cabelo crespo que foram convidadas a cortar para permanecer
em algumas escolas; ou pessoas negras que em seus empregos foram solicitadas a
alisar seus blacks; ou cada pessoa negra que viu seu terreiro ser depredado e
foi agredida física e verbalmente por estar de branco numa sexta-feira ou de
turbante na cabeça; ou para um cara de dreads na rua que foi chamado de
maconheiro e parado pela polícia... Como o discurso muda, não é? Talvez ninguém
tenha dito para os diretores dessas escolas e para os empregadores dessas
pessoas, nem mesmo para a polícia e os outros agressores dessa galera, que
podemos usar o que quisermos, como dizem para os brancos sobre usar turbante,
dreads e fantasia de nega maluca.
“Não existe racismo,
somos todos iguais” se somos todos iguais por que você, branco, pode usar
turbante e eu, negra, não posso? O discurso não é simétrico. Por que um
turbante só vira polêmica na cabeça da branca e nunca das pessoas negras
xingadas de “macumbeiros do diabo” no metrô? A apropriação cultural se torna um
problema se a sociedade continua perpetuando desigualdades e demonizando a
cultura negra, no negro. Como isso aconteceu, eu nunca saberei, mas a cultura
do negro se tornou endeusada quando vivenciada por brancos. Quem não adora Amy
Winehouse, Joss Stone, Elvis Presley, Eminem, MC Guimê, Diogo Nogueira? Rostinhos
brancos cantando música negra, ritmos negros, músicas feitas por negros. Adoram
a nossa cultura, só não adoram a gente. Procura no Google dreads lindos ou
tutorial de turbante. É muito imaturo reduzir todo o contexto e discussão sobre
apropriação cultural a se branco pode ou não usar turbante. A questão não é
essa e nunca foi. Ninguém se importa com branco de turbante, o que devia importar
é o negro tomar pedrada quando usa.
A branquitude continua
sendo a protagonista das histórias, protagonistas de polêmicas onde negros são
sempre os vilões, enquanto banalizam o assassinato de negros pelas mãos da
polícia e os outros absurdos que os negros passam todos os dias neste país. Novamente,
brancos explorando riquezas alheias, neste caso, nossa riqueza cultural,
enquanto nós continuamos morrendo nos becos, no anonimato, sem polêmica e “sem
cultura”, inferiores e demonizados, sem podermos desfrutar da nossa própria
riqueza.
Racismo reverso,
miscigenação e igualdade racial são discursos muito perversos e esvaziados,
discursos que surgem sempre que um branco se incomoda quando dizemos a verdade:
que não há consciência branca, porque branco não tem consciência e não quer ter.
Um medo desgraçado de ser tratado como, historicamente, brancos tratam negros.
Argumentos assimétricos inaceitáveis, que tentam comparar um ato isolado e
pontual a todo um histórico de opressões vividas por negros, argumentos que
tentam justificar a manutenção desses preconceitos e desigualdades, para que os
brancos não percam seus privilégios e os negros continuem em seus lugares
inferiores, calando a boca e abaixando a cabeça toda vez que um branco se
sentir desconfortável. A história continua. A escravidão acabou, mas mantém
seus mesmos personagens, seu mesmo enredo e sua mesma direção e tal como na
obra mais famosa sobre escravidão no Brasil, os protagonistas ainda são os
brancos.
[1] Carla Eloi é
graduada em Produção Cultural pelo IFRJ em 2014, especialista em Linguagens
Artísticas, Cultura e Educação. Texto escrito e publicado em 14 de fevereiro de
2017. Miracema, RJ. Brasil.
[2] Pelo Telefone: Considerado o
primeiro samba gravado no Brasil, no quintal de Tia Ciata. 1916. Composto por
Donga e Mauro Almeida.
[3] Colorismo: texto de referência
“Colorismo: o que é e como funciona” de Aline Djokic <disponível em http://blogueirasnegras.org/2015/01/27/colorismo-o-que-e-como-funciona/>
[4] Mulata: “é uma derivação da
palavra “mula”, [...] resultado do cruzamento do jumento com o cavalo. Inúmeros
registros etmológicos indicam que foi há mais ou menos 400 anos, ou seja,
durante o período escravatista brasileiro, que essa palavra começou a ser usada
para se referir aos filhxs de negrxs com brancxs [...] Naquela época, uma
pessoa nascida de um cruzamento percebido como no mínimo insólito, assim como
no caso do animal, era tida como um híbrido, nem brancx nem pretx e por isso
exigia uma classificação à parte. Uma classificação limitante e preconceituosa,
mas que infelizmente insiste em se manter no vocabulário do brasileiro com o
passar do tempo” (Cris O, 2013). <disponível em http://blogueirasnegras.org/2013/06/26/palavra-mulata/>
[5] Gosto, solidão da mulher negra e
preterimento: Texto de referência “A solidão tem cor” de Anna Beatriz Anjos e
Jarid Arraes <disponível em http://www.revistaforum.com.br/semanal/a-solidao-tem-cor/>.
[6] Apropriação Cultural: Texto de
referência “A cultura negra é popular, mas as pessoas negras não” de Aline
Silveira <disponível em http://blogueirasnegras.org/2015/02/18/a-cultura-negra-e-popular-mas-as-pessoas-negras-nao/>. [editado 15/02/2017] Vídeo complementar: "Mulher branca pode usar turbante?" da página Tia Má no facebook <disponível em https://www.facebook.com/dicasdatiama/videos/vb.1034691449898844/1426089577425694/?type=2&theater>. [fim da edição 15/02/2017]
[7] Miscigenação: Texto de referência:
“A miscigenação racial no Brasil” de Sueli Carneiro <disponível em http://www.geledes.org.br/miscigenacao-racial-brasil/#gs.MmnP4zk>.
[8] Wanda Sykes: atriz e comediante,
que em uma apresentação de seu Stand-Up, falou sobre racismo reverso
<disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bPp6es8W72U>
Muito bom mesmo!!!!!!!!!! Papo direto e reto, só não entende quem não quer!
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